Mais de 100 casos de tráfico de seres humanos, cujas vítimas foram maioritariamente crianças, estão sob investigação das autoridades angolanas. A informação foi prestada no Dundo, Lunda-Norte, pelo chefe de departamento para os direitos económicos, sociais, ambientais e culturais da Direcção Nacional, do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, Felismino Lisboa.
O responsável que falava durante um Workshop sobre “tráfico de seres humanos e direitos de asilo”, esclareceu que além dos processos em investigação, 21 casos de tráfico de seres humanos já foram julgados.
Felismino Lisboa garantiu que a situação está controlada, mas entende que o órgão de tutela deve continuar a manter as medidas para combater o fenómeno, principalmente nas províncias fronteiriças.
“À semelhança de outras províncias, a Lunda-Norte constitui preocupação, por partilhar uma vasta fronteira de 770 quilómetros com a vizinha República Democrática do Congo (RDC)”, alertou.
Segundo Felismino Lisboa, Angola é tido como um dos países de origem, destino e trânsito de tráfico de seres humanos, o que leva as autoridades a estarem cada vez mais atentas.
No dia 1 de Junho de 2020 o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco Queiroz, disse que Angola e Portugal “colaboram permanentemente” no combate ao tráfico de pessoas, sobretudo crianças, com o controlo regular da circulação de pessoas e bens nas rotas aéreas.
Segundo Francisco Queiroz, a cooperação entre Angola e Portugal nesse domínio é igualmente extensiva a outros países, porque normalmente são as rotas comerciais da aviação civil que são aproveitadas pelos traficantes para fazerem o fluxo da sua actividade.
“Portugal é o país com o qual Angola tem mais tráfego de pessoas e bens, mas há outros destinos com os quais Angola tem essa relação de controlo de circulação de pessoas e bens. Os traficantes olham para essas vias e aproveitam as debilidades que possam existir em ambos os lados”, afirmou o governante.
O responsável angolano falava à margem de uma palestra sobre o Tráfico de Seres Humanos em Angola, promovida pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos em parceria com o Serviço Jesuíta para os Refugiados.
De acordo com Francisco Queiroz, pessoas vulneráveis à exploração sexual, exploração do trabalho infantil e a exploração para comercialização de órgãos humanos constituem o perfil da vítima do tráfico de seres humanos no país.
Os “criminosos preferem sobretudo a parte do tráfico sexual, tráfico de seres humanos como mulheres e homens para a exploração sexual, há também o tráfico de crianças para fins de exploração do trabalho infantil”.
Mas, observou, “há um fenómeno muito preocupante a nível internacional que é a extracção de órgãos humanos, com filas grandes no mercado internacional para poderem fazer o transplante, e então os traficantes aproveitam-se dessas necessidades para poderem traficar também”.
Na palestra dirigida a conservadores e técnicos dos serviços de registos e notariado foram abordados temas como a prevenção sobre tráfico de seres humanos nos serviços de Registos e Notariado e a Apátrida/falta de registo de nascimento como risco para o tráfico.
Em 25 de Junho de 2019 a Procuradoria-Geral da República (PGR) angolana anunciou que cerca de vinte casos de tráfico de seres humanos em Angola já tinham transitado em julgado e que este tipo de crime exige novos mecanismos de actuação. Por sua vez, a Polícia defendeu a aprovação de uma “lei específica” para criminalizar estes casos.
“Hoje o quadro do tráfico no país não podemos dizer que não é preocupante, registamos números de queixas e participações baixas, mas isso não quer dizer que a actividade não exista, portanto temos um registo baixo de casos”, disse Astergidio Pedro Culolo, sub-PGR junto do Serviço de Migração e Estrangeiros (SME) angolano.
Em declarações aos jornalistas à margem de uma palestra sobre Tráfico de Seres Humanos em Angola, dirigida aos efectivos da Polícia Nacional, o magistrado deu conta de que as províncias de Luanda, Lunda Norte e Zaire lideram as ocorrências.
Segundo Artergidio Pedro Culolo, orador da palestra promovida pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, em parceria com o Comando Geral da Polícia, aquelas províncias “têm registado actividades mais relevantes” de tráfico humano, sobretudo “devido às fronteiras”.
“Em termos de casos, posso apenas falar dos que já foram tratados judicialmente, que são perto de 20 nessas províncias. Há províncias em que não há registo nenhum, mas o facto de não haver registo não quer dizer que ali não exista o tráfico”, apontou. “Poderá existir, mas ainda não detectamos e se isso acontece, é porque os nossos sistemas de alerta não têm estado a funcionar devidamente”, realçou.
Em Janeiro de 2019, o padre católico Félix Gaudêncio disse que a população da província do Cunene “estava assustada” com os “crescentes relatos” de traficantes de seres humanos, sobretudo crianças.
“O quadro é de medo, a população está mesmo com medo, em pânico, porque se trata de uma população que, anteriormente, acolhia muitas pessoas, orientava quem estivesse perdido, mas hoje em dia há esse receio de orientar ou acolher estranhos”, disse o padre na altura.
O também presidente da Associação Ame Naame Omuno, de defesa e promoção dos direitos humanos na província, defendeu ainda o “reforço do policiamento” no seio das comunidades, afirmando que o tráfico de seres humanos na província “é uma prática antiga”.
“Porém, agora ganha maior visibilidade por causa dos meios de comunicação e por causa do mediatismo, então, isso é uma realidade porque chama muito a atenção o facto de aparecerem pessoas assim mortas, de vez em quando”, bem como “aparecerem pessoas a dizerem que estavam a ser aliciadas para serem levadas para a Namíbia”, afirmou.
Em Dezembro de 2018, um vídeo publicado nas redes sociais apresentava um suposto autor confesso desses crimes, relatando como terá matado uma mulher, a quem terá retirado os órgãos, que foram levados para a Namíbia.
Polícia quer lei específica
A Polícia defendeu na altura a aprovação de uma “lei específica” para criminalizar o tráfico de seres humanos, com registo crescente de casos nas províncias de Luanda, Cunene, Lunda Norte e Zaire.
Segundo o então director nacional adjunto do gabinete jurídico do Comando Geral da Polícia, Osvaldo Moco, a legislação vigente no país, nesse domínio, “deve ser aprimorada e aperfeiçoada por se enquadrar no conjunto de normas que prevêem outros ilícitos criminais”.
“Tendo em conta a sua pertinência e a preocupação que esse fenómeno apresenta, entendo que deveria ser concebida uma legislação específica que tratasse, especialmente, desse tipo legal de crime”, disse. E a Polícia Nacional, adiantou, “terá o seu papel a desempenhar contribuindo com ideias para uma lei específica que trate a questão do tráfico de seres humanos no país”.
Falando aos jornalistas à margem da referida palestra, sublinhou que as províncias fronteiriças “apresentam maiores preocupações”.
“A nível do país, a maior preocupação apresenta-se com a fronteira norte, sobretudo na região do Luvo, província do Zaire, assim como alguns casos registados na zona leste e sul e ainda temos registos de tráficos humanos para o exterior do país”, afirmou.
Para Osvaldo Moco, as pessoas vítimas de tráfico de seres humanos sofrem “situações desastrosas, como a escravidão e exploração sexual”, daí que, observou, “temos que envidar todos os esforços operativos e legislativos para contrapor a situação”.
O que se afirmava em 2014
O combate ao tráfico de seres humanos em Angola vai ser coordenado por uma comissão interministerial criada pelo Presidente da República, integrando ainda a Polícia Nacional e a Procuradoria-Geral da República, foi anunciado em Luanda no dia 26 de Novembro de 2014.
De acordo com informação enviada então pela Casa Civil do então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, esta comissão, criada por despacho, visava “garantir a protecção, a assistência, a recuperação, a reabilitação e a reinserção no seio da sociedade de vítimas de tráfico”.
Seria coordenada pelo então ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira – envolvendo mais oito ministérios -, e deveria, entre outras funções, “formular um programa abrangente e integrado para prevenir e reprimir o tráfico dos seres humanos”.
A comissão iria ainda “elaborar normas e regulamentos” necessários à “implementação efectiva” do combate a este tipo de crime, além de “monitorar e supervisionar” a sua aplicação, sendo apoiada por um grupo técnico integrando representantes da Procuradoria-Geral da República, da Polícia Nacional, do Instituto Nacional da Criança e do Instituto Nacional da Juventude.
Em Julho de 2013, o então comandante geral da Polícia Nacional de Angola, Ambrósio de Lemos, afirmou que aquela força estava “atenta” e a trocar informações nomeadamente com as autoridades policiais portuguesas sobre situações suspeitas de tráfico de seres humanos envolvendo os dois países, neste caso de menores.
Na altura, o último caso conhecido acontecera 8 de Maio, quando o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de Portugal procedeu à detenção de um suspeito de tráfico de três menores, com idades compreendidas entre os 4 e os 13 anos, no aeroporto Sá Carneiro, no Porto, provenientes de Luanda.
“É mais uma tipicidade criminal que se juntou às outras que nós temos. Como se está internacionalizar, é necessário que Angola esteja atenta porque não está isenta desta criminalidade”, reconheceu o comandante da polícia angolana.
A troca de informação com a Polícia portuguesa, e outras forças estrangeiras, foi classificada por Ambrósio de Lemos como uma “necessidade muito premente”, de forma a combater alegadas redes de tráfico de seres humanos que passam ou operam no país.
As autoridades policiais suspeitavam sobretudo de grupos que operavam entre a República Democrática do Congo e o centro da Europa, via Angola e Portugal. O tráfico de mulheres, para prostituição, era outra das preocupações das autoridades angolanas.
E, como o Folha 8 revelou no dia 24 de Novembro de 2014, o relatório 2014 do departamento das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC) salientava que o tráfico de crianças continuava a crescer e já representava um terço dos casos de tráfico de pessoas no mundo.
Em África e no Médio Oriente, as crianças representam a maioria das vítimas de tráfico de pessoas e em países como Índia, Egipto, Angola ou Peru podem alcançar 60% do total de casos, indicava o UNODC.
O UNODC lembrava que entre 2003 e 2006 as crianças e os adolescentes só representavam 20% dos casos de tráfico conhecidos. No mundo, 70% das vítimas de tráfico de pessoas são mulheres, contra 84% dez anos antes.
O relatório também expressava a sua preocupação por alguns tipos de tráfico de pessoas, como o que obriga as crianças a combater, ou a participar em pequenos crimes ou na mendicidade forçada. No entanto o documento, baseado em dados fornecidos por 128 países, só permitia ver a “parte visível do iceberg”, indicava a ONU, que lamenta que em muitas regiões do mundo o tráfico de seres humanos continue a ser “uma actividade pouco arriscada e muito lucrativa para os criminosos”.